Aprender matemática, história, ciências naturais e até língua portuguesa, num bosque, no meio da cidade de Leiria? Talvez lhe pareça estranha a ideia, mas foi essa a proposta da Ludotempo – Associação de Promoção do Brincar, em parceria com a It’s great Out There (entidade financiadora) e a Confraria de Nossa Senhora da Encarnação, com o projeto “À (re)descoberta do Monte de N. Sra. da Encarnação”: seis dias, mais de 800 horas de atividades distribuídas por 123 crianças, do 3º e 4º anos, provenientes de 3 escolas e uma experiência pioneira de aprendizagem no Monte de Nossa Senhora da Encarnação, em Leiria.
Este projeto, inovador neste território, partiu da abordagem de “ensino outdoor”, ou seja, uma experiência de aprendizagem em que as crianças aprendem conceitos do currículo tradicional (das disciplinas que habitualmente têm na escola), mas a partir de atividades práticas, fora da sala de aula, em espaços como jardins, florestas, monumentos, ou qualquer outro, ao ar livre.
Na prática, esta experiência começou com uma pergunta simples, colocada ainda antes das crianças subirem ao monte, junto ao ponto onde a ribeira do Sirol entra nas águas do rio Lis: “Tenta imaginar Leiria há pouco tempo depois de ter surgido o Castelo… O que achas que levaria alguém a construir uma igreja nesta zona?”.
“Se eu pudesse ia ao passado e ia outra vez à Sra. da Encarnação.” Martim, 9 anos
No caminho começámos com o desafio da subida, o desbravar dos trilhos apertados, o escutar das aves (“Que ave será esta?”), o observar das dezenas de cogumelos (fungos) e milhares de bolotas no chão (“De onde virão?”), a revelação dos quercus (designação dada às árvores da família dos sobreiros e carvalhos) majestosos, quase a chegar ao topo do monte e, finalmente, a revelação da cidade, esplêndida nas vistas, intensa nas histórias que os seus recantos contam.
Do topo do monte as crianças avistaram a história de Portugal ainda antes de ser Portugal – o castelo mandado construir em 1135, ainda antes de haver Portugal no papel; uma igreja majestosa sem sinos (a atual Sé de Leiria), que mais tarde viu ser construída uma torre sineira, para marcar o tempo (numa altura em que não havia relógios de pulso) e assinalar os acontecimentos mais importantes da comunidade; ou um convento (convento de Sto. Agostinho), que antes de o ser, foi fábrica de papel, e depois de o ser passou por várias utilidades, de quartel militar ao atual museu de Leiria; ou até uma chaminé alta, que revela lá longe a Cerâmica do Liz, que alberga um museu da cerâmica e que diz muito sobre a propensão deste território para a exploração de uma matéria prima indispensável para o desenvolvimento e bem-estar de todos nós – o barro. Sobre tudo isto (e mais), fizeram observações, leram textos, escreveram e apresentaram os diferentes pontos da cidade entre si, numa aula viva, dada pelas próprias crianças, com orientação dos professores.
“Eu gostei da experiência porque adora natureza, rua e história. Se pudesse fazia esta atividade todos os dias.” Alice, 9 anos
Depois, com mapas e bússolas na mão, lançaram-se, em autonomia, à descoberta de outros pormenores únicos do monte; novos desafios guiados por enigmas matemáticos que os conduziram a um tesouro, escondido numa gruta monstruosa (que afinal era antiga mina de água já seca).
“Eu gostei da caça ao tesouro, de ir à casa dos monstros e passear pela floresta à procura de coisas da natureza.” Angélica, 8 anos
Mais tarde, munidos com lupas, sacos de recolha, e frascos de observação de “insetos”, lançaram-se no desafio de se tornarem “naturalistas” (cientistas que estudam o mundo natural), a descobrir e a identificar as diferentes espécies que fazem parte do ecossistema do monte. Descobriram espécies autóctones (de ecossistemas mediterrâneos ou similares – p. ex. o sobreiro) e até endémicas (exclusivas do território português – p. ex. o carvalho cerquinho), insetos (que dse identificam por terem 3 pares de patas, corpo dividido em cabeça, tórax e abdómen e um par de antenas) e outros artrópodes (como as aranhas, milípedes) e até minerais encantadores (calcários e quartzos) – houve até quem encontrasse fósseis reveladores de outros tempos e de fantásticas geologias, pelo caminho.
“Porque nós fizemos aventuras explorámos a natureza aprendemos coisas novas que não sabíamos (…). Encontrámos bugalhos e tinham lá vespas.” Emília, 8 anos
Finalmente descobriram que com um dos recursos outonais mais abundantes no monte – os bolotas – se pode fazer farinha, o ingrediente principal de um lanche preparado quase exclusivamente pelas próprias crianças (as crianças interpretaram a receita e o professor preparou o fogo) – umas belas panquecas de farinha de bolota.
Foram dias cheios de desafios e descobertas individuais e coletivas, que alargaram horizontes (p. ex. 76,4% das crianças nunca tinha participado numa atividade semelhante), inspiraram, mas sobretudo imprimiram na memória de todas as crianças uma imagem de um dia feliz, em que superaram desafios (p. ex. cada criança percorreu, em média, cerca de 11km a pé, por sessão) descobriram novas maravilhas do mundo (p. ex. identificaram 23 “espécies” de animais, plantas e minerais que não conheciam), trabalharam em equipa e conquistaram o prazer de saber mais.
“Eu gostei muito porque fiz coisas diferentes, nunca fiz panquecas e nunca mesmo nunca soube que havia uma árvore que só existia em Portugal.” Miguel, 9 anos
É que o que é maravilhoso nas experiências de ensino outdoor é que há sempre algo que faz despertar a centelha da curiosidade de cada criança; algo que a faz querer prestar atenção, dedicar-se, saber mais, questionar. Ali, no monte, para alguns foi a história de Portugal e de Leiria; ou a emoção de explorar o monte à procura de pistas e desafios matemáticos para descobrir os códigos que abriam o baú do tesouro; ou a responsabilidade de ler o mapa e orientar a equipa com a bússola; ou ainda o fascínio dos animais, dos fungos, da diversidade que se encontra na Natureza; ou a descoberta de que podemos alimentar-nos com o que a Natureza selvagem nos dá.
“Eu gostei muito do almoço e adorei a ideia de termos apitos, bússolas e mapas e irmos fazer sozinhos, mas em equipas.” António, 9 anos
Isto é tanto verdade que, quando voltámos às escolas de origem destas crianças, duas ou três semanas após o dia da experiência, para avaliar que impacto da experiência, fomos recebidos com as memórias das crianças (p. ex. 63,4% das crianças conseguiram descrever, por escrito um conhecimento adquirido durante a experiência no monte); e com a certeza, por parte dos professores, de que as atividades propostas foram ou serão o mote para novas propostas de atividade, agora em contexto de sala de aula (100% dos professores afirmam que já utilizaram ou vão utilizar os materiais propostos para dar continuidade à experiência no monte).
“Oportunidade de aprender na rua e de contactar com a Natureza. Senti que os alunos estavam em harmonia e felizes.” Professora titular 1º ciclo
Esta é a nossa visão: esta abordagem não visa substituir a educação tradicional, mas complementá-la e enriquecê-la, proporcionando às crianças experiências únicas de aprendizagem, mais significativas e envolventes, conectadas com o mundo natural – criar hábitos de vida saudável e experiências de aprendizagem com impacto.
“O melhor de tudo é ver o brilho nos olhos das crianças ao descobrirem a natureza e a história da nossa cidade.”. Francisco (organização)
Queremos por isso, através do projeto Aulas Verdes – Aprender na Natureza (dentro do programa Brincar de Rua Escolas) que mais crianças tenham acesso a esta experiência e queremos criar outras experiências, noutros territórios, que contribuam o projeto educativo de mais comunidades.
“Eu gostei porque descobri coisas que nunca sequer vi em algum sítio do mundo. Se eu pudesse ia fazer de novo várias vezes, talvez mais 1000 vezes se eu pudesse.”. Eduardo, 8 anos
It’s great Out There, é uma associação sem fins lucrativos, de abrangência europeia, lançada pela indústria de atividades ao ar livre em 2017, com o objetivo de aumentar a consciência pública sobre os benefícios e o impacto positivo das atividades ao ar livre para as pessoas e para a sociedade. Financiou o planeamento e execução deste projeto através de uma bolsa.
Confraria do Santuário da Nossa Senhora da Encarnação, é a associação sem fins lucrativos, que gere e mantém o Monte e o Santuário de N. Sra. da Encarnação. Cedeu, a título gratuito o monte e as infraestruturas de apoio para que pudéssemos realizar a atividade com toda a segurança e comodidade.
Este projeto foi realizado também com o apoio de dois agrupamentos de escolas públicos (AE Correia Mateus e AE D. Dinis), e de uma Instituição Particular de Solidariedade Social (Jardim-escola João de Deus), que acolheram a ideia e aceitaram participar neste projeto inovador.
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