Vizinhança rima com esperança

Domingo, 3h da tarde. Tinha já passado pelas brasas (a minha esposa estava a dormir e o miúdo a meio caminho), quando tocaram insistentemente à campainha. Levantei-me, a pensar qual seria a “desgraça” e lá segui para a porta, meio ensonado e, confesso, a praguejar só um bocadinho. Abri a porta; não estava ninguém. “#$%%@”! Pensei que talvez fosse alguma coisa importante – para justificar a interrupção da minha tão merecida sesta – e por isso fui à janela, tentar perceber o que se passava: à porta do prédio estava o meu vizinho da frente, sorridente – “Era para lhe entregar o boomerang, vizinho!”. Fechei os olhos, contei rapidamente até 10 e… sorri, acenei e agradeci!


Para contextualizar o que se passou:

Tinha estado a brincar há uns dias com o meu filho com um boomerang, na rua, em frente ao prédio. O tal vizinho estava, na mesma altura, na sua varanda; metemos conversa de ocasião e, às páginas tantas, no meio da brincadeira lancei o dito boomerang de forma pouco ortodoxa, acabando por aterrar no telhado da antiga igreja, em frente ao nosso prédio. “Agora já nunca mais o apanha ó vizinho!”… Lá gozámos com os meus dotes de lançamento e a brincadeira terminou por ali. O meu filho confortou a sua tristeza com a teoria de que o dito haveria de cair, quando o vento soprasse com mais força e aí eventualmente acabaríamos por recuperá-lo. E foi isso que aconteceu, ontem! O vizinho Pedro deve ter visto o boomerang caído no chão e, claro, veio entregá-lo, orgulhoso da boa ação. O meu filho já não voltou a adormecer e ficou todo excitado com a novidade (e a confirmação da nossa teoria); e lá se foi a minha sesta. Mais tarde – quando recuperei do choque de ainda não ser “agora” que haveria de repor o meu sono –  dei por mim a pensar: “Caramba, é bom viver aqui com esta gente!”.

O Pedro não é meu amigo, no sentido mais “romântico” da palavra (não celebramos aniversários juntos, não partilhamos intimidade…). É nosso vizinho, o que para nós significa que podemos confiar nele para as pequenas coisas do dia-a-dia:

  • para ficar um pouco de olho no nosso filho se estivermos todos na rua e eu precisar de subir ao meu apartamento para ir buscar qualquer coisa;
  • se me faltar algum ingrediente para uma refeição;
  • ou para me vir devolver as chaves que ficaram no portão da garagem ou o boomerang caído na rua, porque ele sabe que são meus.
  • já partilhámos boleias, ferramentas, ajudas sempre que foi necessário;

E o mesmo acontece com outras pessoas do prédio ou mesmo da rua. Não sendo meus amigos, fazem parte da minha rede de confiança, a tal que me faz sentir seguro ali; a tal que me faz sentir prazer em viver ali. Criámos uma comunidade que tolera as habituais idiossincrasias de cada “vizinho” e, sobretudo, se ajuda sempre que necessário estar lá para o outro.

Nas cidades modernas as “estruturas” orgânicas de comunidade – como a que descrevi – estão a esvair-se…

O individualismo impera (o apartamento é o local de conforto individual/ da família, que protege contra as agressões da cidade, dos vizinhos incomodativos, das crianças barulhentas, das “pestes”, stresses e (outras) poluições – quero chegar a casa e descansar/ desligar). A unidade “apartamento” já dificilmente se quer associar ao condomínio (a maior parte de nós abomina essa primeira organização demoníaca da cidade, que só dá chatices); está de costas voltadas para a rua (porque ela lhe traz os tormentos da cidade, porque lá escasseiam os estacionamentos, porque o município faz pouca manutenção, porque há demasiados lulus e “poias” correspondentes, e de menos equipamentos, vigilância, etc.), e é “alérgica” à ideia de bairro (os bairros passaram a ser “urbanizações” que assumem o papel de demarcar um certo estatuto social dos seus habitantes.

Recordo-me que nas primeiras vezes que apresentávamos o Brincar de Rua a  entidades “oficiais”, as pessoas nos recomendavam que evitássemos o termo “bairro” porque “tem conotação de “bairro social” e ninguém quer ser visto como morador de um bairro social”.

Muitos dirão que há pouco tempo (e até espaço) para fomentar a relação entre as pessoas que vivem no apartamento da frente, no prédio, na rua, no “bairro”… mas será que isso não é apenas uma desculpa para o nosso desinvestimento nas pessoas e para a nossa crescente falta de empatia? Em tempos de pandemia não deixa de ser (deliciosamente) curioso observar o nascimento de centenas de iniciativas de boa vizinhança, movimentos de gente que percebeu, por exemplo, que:

  • “vivem mais famílias no prédio com miúdos mais ou menos da mesma idade dos nossos e que estão, como nós, à beira de um ataque de nervos a tentar gerir o teletrabalho com crianças em casa e que talvez possamos trocar ideias e fazer atividades (por agora, à distância)”;
  • que “na nossa rua vive um casal de pessoas mais debilitadas que estão sozinhas e que provavelmente precisam de ver e falar com alguém, nem que seja a 2 metros de distância, ou que alguém lhes vá pelo menos à farmácia aviar os medicamentos do mês”;
  • que “estou enrascado com um problema com o meu wifi e que a operadora só consegue resolver daqui a uma semana… talvez o vizinho me possa ceder temporariamente a password de acesso da dele”.

Basicamente pessoas que encontraram motivos para ajudar ou procurar ajuda junto da sua comunidade, das pessoas que vivem à sua volta.

O que podemos aprender com estes “movimentos”?

Bom, talvez “aprender” seja uma palavra um tanto ou quanto exagerada… mas certamente que podemos tirar notas para reflexão. Eu deixo aqui algumas das minhas:

  1. As relações de vizinhança não nos tiram tempo de vida – os minutos que gastamos com conversas banais, com as ajudas ao vizinho do lado a transportar as compras da semana, são rapidamente retribuídos quando vejo os vizinhos a mimar o meu filho, a ajudá-lo a subir a escada com a bicicleta, a pedirem-lhe para fazer mais desenhos (porque “gostaram muito” dos anteriores), a brincar com ele na rua, ou a comprar-lhe uma fatia de bolo só porque ele estava a angariar uns “euricos” para um projeto pessoal (porque isso é tempo de qualidade para ele, são lições de vida em comunidade a que não poderia aceder de outra forma);
  2. Não nos tiram segurança – porque como os meus vizinhos conhecem as minhas rotinas diárias, como sabem que eu fui de férias ou que aquela bicicleta que está no átrio é minha e que o meu filho é o meu filho, há mais pessoas alerta, vigilantes pelos meus, pelas coisas que tenho à minha guarda (e acreditem que já me foram úteis);
  3. Termino com a mais elementar de todas (mas tantas vezes esquecida)… Do outro lado das paredes do meu apartamento/ do outro lado da minha rua/ no meu bairro vivem pessoas como eu, que procuram sossego, tranquilidade, divertir-se sempre que possível (e isto implica entendimentos diferentes da forma como se chega a essa estado de diversão) e, sobretudo, ser felizes, com os filhos, companheiros, amigos ou com eles próprios. Talvez esta seja a chamada mais importante… a chamada para a empatia e para o reconhecimento que no nosso bairro existem “recursos” e que nós próprios podemos ser um “recurso” para tornar a vida de todos melhor – e o potencial é imenso.

Não alimento ideias românticas de que no “pós pandemia”, todos nos vamos dar bem com os nossos vizinhos…

E que as reuniões de condomínio vão passar a ter churrasco e bebidas para toda a gente e que vamos ter festas de rua e de bairro todos os meses – era giro e socialmente saudável, mas não vai acontecer – mas talvez esta seja uma oportunidade para “acordarmos” para as pessoas que vivem perto de nós… que não são família, eventualmente nem são amigos, mas são pessoas como nós que podem até ter pontos de encontro com as nossas maneiras de pensar e de viver e por isso tornar as nossas vidas melhores, mais realizadas (talvez se criem novos Grupos Comunitários do Brincar [ ver o que são Grupos Comunitários do Brincar], grupos de caminhadas, hortas comunitárias, encontros de jogos tradicionais ou de renda, móveis comunitários de partilha de bens… ou simplesmente apenas se criem novas relações ou mais disponibilidade para ajudar…).

Acho que por esta altura todos percebemos a importância de termos boas relações de vizinhança – seja porque as temos e damos graças por elas existirem num tempo em que estamos confinados de tantas formas, seja porque não os temos e simplesmente já estamos cansados de interagir com pessoas através dum ecrã.

Por tudo isto, ginasticar o músculo das relações de vizinhança parece-me um imperativo.


Mais do que nunca, nós e os nossos filhos precisamos de esperança e a esperança faz-se também de gente à nossa volta que nos ajude a acreditar!


O meu filho já começou a “ginasticar” e, para além das pequenas coisas do dia-a-dia, pôs mãos à obra com esta atividade engraçada: “Olá Vizinho!” [neste link] Ora experimentem (por aqui já deu resultados!).

Por Francisco Lontro, psicomotricista e coordenador do “Brincar de Rua”, o programa de inovação social que está a criar oportunidades para que as crianças possam brincar de novo na rua, em segurança.

 

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