Mais ou menos como previsto, passados os primeiros 3 dias de “estado de graça” (sem graça nenhuma) de quarentena estalou o verniz: as mães descobriram que afinal o multitasking feminino não se aplica quando têm que trabalhar (teletrabalho) com os miúdos em casa (os pais… bom… nem quero falar disso, para não começar a chorar); os professores descobriram que afinal… não descobriram a caixa de pandora da educação – não, as plataformas de ensino à distância não são o Aladino que vai executar o desejo de todos os professores bem intencionados: “Desejo que todos os meus alunos aprendam todos os conteúdos que eu – mestre acreditado pelo Todo Poderoso Ministério – tenho para lhes mostrar”; os miúdos, esses, como quase sempre, não são vistos nem achados nesta equação (seria interessante tentar aferir quantos deles foram questionados sobre “o que é que vocês acham que é a melhor forma de mantermos o contacto nestes dias de quarentena?”) – há alguns que estão a fazer o que os professores mandam e os pais obrigam; outros que não pegam no ritmo da coisa; outros que não se importam; e outros ainda para quem o ensino à distância nem sequer existe no seu horizonte (simplesmente porque não têm acesso).
Creio que ninguém estaria honestamente à espera que estes tempos fossem um mar de rosas e que houvesse soluções capazes de manter a normalidade quando tudo à nossa volta parece estar de pernas para o ar: escola em casa, família em casa, miúdos só em casa (nem o Santo Ikea nos safa desta!).
Evocou-se, com a melhor das intenções, o Santo Graal do ensino à distância, na tentativa de “normalizar” a Educação dos nossos miúdos em tempos de quarentena (ou pelo menos de minimizar os impactos negativos que muitos anteciparam), mas creio que mais do que mal executada (estou a generalizar, claro – há por aí muitos bons exemplos de boas práticas de ensino à distância a decorrer) esta foi uma ideia que não teve tempo de ser amadurecida e refletida – por ninguém. Vale sobretudo pelo esforço dos educadores de infância e professores e pela quantidade de experiências que se estão a realizar, abrindo caminhos para novos tempos na Educação em Portugal.
Somando tudo, estou certo que existe aqui um fundo de oportunidade; temos que decidir individual e coletivamente o que queremos que fique deste cinzento episódio da história humana e há talvez pontos de reflexão que serão importantes começar desde já a equacionar. Eu, que tendo a ser menos otimista do que a maioria, gosto de pensar nos problemas/ obstáculos e analisar o que eles nos podem mostrar para o futuro (o que posso/ quero ou não posso/ quero fazer); por isso decidi compilar neste texto alguns mitos sobre a educação à distância e daí tentar partir para algumas soluções que podem eventualmente ajudar a mitigar o impacto deste tempo nos miúdos, famílias e professores, mas também dar pistas sobre como queremos pensar a Educação num futuro próximo.
Vamos a isto? Começamos por alguns mitos…
“Já toda a gente tem internet em casa, por isso, ensino à distância, em frente, marchar, marchar!!!!! (e com todas as tecnologias que estão disponíveis no mercado)“
Apostar nesta altura num modelo de ensino à distância com base em recursos online é deixar de fora (provavelmente) 20% a 30% dos alunos (porque não têm internet em casa; porque só tem internet por dados móveis com um orçamento reduzido e pouca disponibilidade de dados; e até porque não têm computador e há certas tarefas que dificilmente se podem aceder através dum smartphone). Por isso é importante pensar como nos queremos colocar em relação a estes números e, sobretudo, como é que podemos assegurar que os alunos que não têm acesso à internet e aos meio digitais adequados continuam a fazer valer o seu direito à educação, em igualdade de oportunidades.
“Esta geração de alunos é a “geração digital”…
É claro que eles estão aptos para ensino à distância. Estão obviamente mais aptos para lidar com tudo o que sejam tecnologias digitais/ online, claro (cresceram com elas); mas daí até pensar que os miúdos entram na dinâmica de ensino à distância numa ou até duas semanas de trabalhos que os professores colocam no “moodle” vai uma distância enorme. Trabalhar (ensinar/ aprender) à distância precisa de tempo de adaptação a novas rotinas (gestão pessoal) e tempo de incorporação de novas formas de “beber” e produzir informação; e não é justo exigir dos alunos à distância, o mesmo que se exige no ensino tradicional (pelo menos ainda não… esperemos lá chegar).
“Ensino à distância é igual ao ensino “normal”, mas só que… à distância”
Há dias ouvi um formador de ensino à distância dizer que diz aos seus formandos: “Se estão a pensar manter o paradigma tradicional de ensino na produção de conteúdos educativos online, mais vale a pena estarem quietos e voltar para a vosso palanque de professor do século passado.”. Estou de acordo. Ensinar à distância tem desafios únicos e oportunidades diferentes do sistema tradicional. E isto faz ainda mais sentido se estamos a falar de ensino para crianças e jovens, que estão habituados a uma experiência de utilizador digital muito mais voltada para o entretenimento. Os professores têm que saber adaptar conteúdos, integrar ferramentas digitais diversas, tudo para criar um “pacote” que permita a quem está a “consumir” manter-se atento, motivado e verdadeiramente empenhado em ultrapassar os desafios que lhes são colocados pelo professor, que, aliás, muitas vezes é sobretudo um mentor. Portanto, ensino à distância, é uma ferramenta fantástica, mas é preciso ser pensada com tempo (que é o que não temos por agora).
“Os miúdos agora têm muito tempo livre, posso mandar fartura de exercícios para os manter entretidos”
Vão ter exatamente o mesmo tempo que sempre tiveram e que devem ter (o razoável para preencher um dia de “trabalho”). Acresce ainda que nestes dias vão estar assoberbados com outras questões: vão estar provavelmente em família, com os desafios que se impõem a uma rotina nova de estar em casa tanto tempo (tarefas diárias, outros ritmos familiares) e, sobretudo, estão numa situação completamente nova do ponto de vista social (não vão estar com a sua rede social de suporte) e provavelmente vão precisar de mais tempo para estabelecer relações sociais à distância (outro dos mitos que circulam por aí é que os miúdos já só socializam online e por isso esta situação para eles é dia a dia habitual; não é verdade, eles socializam sobretudo usando ferramentas digitais, mas continuam a precisar de estar presentes).
“Vão perder um período de aulas… nunca mais vão recuperar.”
Calma; e que tal pensarmos ao contrário: o que é que os miúdos podem ganhar com tudo isto? Em primeiro lugar, nesta fase creio que o que menos importa são os conteúdos programáticos que os miúdos possam aprender (ou não)… Este é um tempo de incertezas (já reparou certamente que esta é uma crise sem precedentes nas vidas deles, nas nossas e até nas dos nossos pais). É preciso mostrar aos miúdos, em primeiro lugar que estão seguros; em segundo, que nós, adultos de referência, temos algumas ideias estruturadas sobre como tudo isto se vai passar (e que não andamos feitos “baratas tontas” a arriscar soluções que não fazem sentido, que não envolvem todos); e, finalmente, é fundamental que possamos mostrar aos miúdos o outro lado desta “crise”: esta “experiência” vai ser recordada apenas como aquele mês em que tivemos que ficar fechados em casa? Ou será que podemos aproveitar esta oportunidade para falar da importância da família e dos amigos nas nossas vidas? Ou será que podemos aproveitar esta oportunidade para despertar o sentido de solidariedade nos nossos miúdos? O sentido de vizinhança, de comunidade?
Colocadas estas questões prévias importa então refletir sobre o que podemos fazer – adultos, pais e professores – para potenciar experiências positivas junto dos nossos miúdos, nestes tempos cinzentos.
Quando comecei a pensar no impacto que esta quarentena iria ter em toda a comunidade escolar lembrei-me da teoria da Pirâmide de Maslow, que, em poucas palavras define uma hierarquia de cinco categorias de necessidades humanas (da base para o topo: fisiológicas, de segurança, sociais, estima e realização pessoal) e afirma que um indivíduo só consegue realizar plenamente as necessidades “superiores”, se as anteriores estiverem supridas. Apesar das falhas que são apontadas à teoria, parece-me um excelente ponto de partida para pensarmos como podemos organizar a nossa ação, pois creio que o principal desafio que temos em mãos é não negligenciar o essencial, sem embarcar em histerias sobre a quantidade de matéria do programa que os miúdos vão aprender este ano. Este é um ano atípico e não devemos por isso esperar que os resultados sejam típicos; aliás, creio que todos teremos muito a ganhar se dermos espaço para o “atípico” fazer emergir novas ideias para a Educação dos nossos miúdos.
Para aprender, as crianças/ jovens precisam dum ambiente securizante, que estimule os seus interesses individuais, que seja claro quanto aos conteúdos essenciais a reter (a matriz dos programas) e que seja intelectual e socialmente capaz de integrar todos. Educar, neste tempo de crise é, em minha opinião, mostrar segurança e incutir esperança (de que tudo vai passar e de que vamos sair mais fortes de tudo isto).
Na lista que se segue estão misturadas ideias para pais, professores e alunos; para crianças mais pequenas e jovens mais maduros. O objetivo é ler, refletir e eventualmente adaptar à realidade de cada um, “à vontade do freguês”!
1. Necessidades fisiológicas
Comer bem, dormir bem, manter o corpo ativo – Muito tempo em casa implica por vezes alterar:
- Fazer uma ementa semanal com os miúdos, limitar as calorias supérfluas (mas avaliar até que ponto os “miminhos doces” são importantes para os dias mais difíceis).
- Fazer um horário com os miúdos e garantir que as rotinas se aproximam o mais possível do habitual (os professores podem por exemplo agendar conversas com os alunos no mesmo horário da sua aula). É também necessário garantir um tempo de sono de qualidade para que todos estejam a postos para enfrentar com alegria o dia seguinte.
- Fazer um plano de atividade física… não sabe como? A internet ajuda (nesta lista) vai encontrar pelo menos duas sugestões)
2. Necessidades de segurança
A minha família está bem? O que me vai acontecer? – O vírus abre noticiários, está na capa de jornais, no facebook… é natural que os miúdos se sintam ansiosos com tudo isto, sobretudo com o impacto que possa vir a ter na saúde dos seus familiares e até (para os mais velhos) na “saúde social”. Palavras de ordem: “Vai ficar tudo bem!”
- Rever as questões de prevenção/ segurança. Saber como atuar é a melhor forma de prevenir medos desnecessários.
- Falar sobre a pandemia o mais abertamente possível, ajustando a linguagem à idade (e partilhando apenas informações fidedignas); mostrar disponibilidade para responder a questões (a este respeito espreite esta reportagem da RTP (https://www.rtp.pt/noticias/pais/como-explicar-o-novo-coronavirus-as-criancas_v1210405)
- Assegurar que os miúdos não vão ser prejudicados do ponto de vista escolar pela quarentena – um vídeo ou um email do diretor da escola ajudava, com toda a certeza (vai haver por aí muito jovem ansioso com as notas!).
- Para os professores/ diretores de turma que não tiveram oportunidade de falar com os seus alunos antes da quarentena, que tal fazerem um vídeo a falar sobre a escola, sobre como tudo vai lá estar quando isto passar, sobre como vão todos voltar a aprender juntos em breve, sobre como é importante que se mantenham ativos mentalmente e socialmente e que não deixem ninguém da turma para trás?
- Evitar os noticiários constantes e focar sempre que possível nas notícias positivas.
3. Necessidades sociais
Amigos, conhecidos e namorados vão estar distantes; miúdos que já eram introvertidos vão ficar (ainda) mais isolados; tempo de família como provavelmente nunca tinha acontecido na família; vizinhos distantes – há que incluir, gerir (a emoção d)a distância, fazer um novo esforço para uma vida mais solidária e comunitária, mesmo que à distância.
- Usar e abusar do skype para falar regularmente com a família.
- Organizar grupos de turma nas redes sociais, que não deixem ninguém de fora (se não for possível, fazer o mesmo por email ou até por sms).
- Deixar bilhetes para os vizinhos – aproveitar a oportunidade para se apresentarem aos vizinhos do prédio ou da rua, mostrarem-se disponíveis para ajudar (quem sabe se não se fazem ou reatam boas relações a seguir à quarentena).
4. Necessidades de estima
Para as crianças e jovens a escola é um pilar não só da sua formação académica, mas também da sua formação enquanto pessoas, num contexto social específico. O ano letivo não pode ser posto em causa – é imperativo valorizar o esforço que fizeram/ estão/ vão fazer, com o objetivo de os tornar mais fortes, resilientes e disponíveis para o que virá a seguir.
- Se eu fosse professor adotava uma medida especial: gravava hoje mesmo um vídeo a anunciar a todos os meus alunos que teriam a nota que quisessem ter neste período (não é a nota que acham que merecem ter; é a nota que querem ter) – um prémio pelo esforço que vão ter que fazer para se manterem ativos; um acreditar que se vão esforçar para manter a nota que realmente querem (terminaria o vídeo com um “Acredito em ti. Vamos trabalhar juntos para manter essa nota no final do ano”).
- A missão “obrigado” – escrever e enviar um texto (privado) de reconhecimento/ agradecimento para todas as pessoas que importam.
5. Necessidades de realização pessoal
No topo de tudo vem o conhecimento, a criação, o aprender verdadeiramente algo que se desejou, de que se gosta e eventualmente partilhá-lo com o mundo.
- Fazer um diário de aprendizagem, que registe as aquisições, os desafios superados e aqueles que virão no pós quarentena (com ideias de como se irão superar).
- Investigar é preciso! Uma pergunta certeira faz as maravilhas para o espírito duma criança/ jovem ávido de conhecimento (por vezes muito mais do que uma aula inteira de exposição de conteúdos).
- Rever a matéria dada; nesta altura, mais importante do que avançar nos conteúdos talvez seja consolidar o que ficou para trás.
- Jogos de quizz, para tornar a partilha de conhecimentos mais interativa e, sobretudo, divertida (Eu pessoalmente adoro o Kahoot [https://kahoot.com/], que permite criar os nossos próprios Quizz ou sugerir outros que já existam na rede, desafiando outros utilizadores a entrar.
- Criar grupos de estudo com alunos de diferentes pontos do país – e porque não do mundo.
- Inspirar-se com os milhares de conteúdos de qualidade publicados na internet – já conhece a Academia Aga Khan [https://pt-pt.khanacademy.org/]?
- Estimular a pesquisa/ descoberta de temas específicos do interesse do aluno; mostrar interesse por essas descobertas e fomentar a partilha com os colegas (por não inaugurar a rubrica “Professor por 1 aula!” em que são os miúdos a gravar um vídeo sobre um tema específico).
- Estimular a descoberta e partilha dos talentos individuais (contar histórias, ensinar língua gestual, cantar/ tocar, fazer um bolo… são milhares as experiências enriquecedoras que se vêem por essa internet fora).
E pronto… é isto que queria partilhar. Acima de tudo há que manter a calma, mostrar que confiamos nos miúdos e transmitir-lhes esperança.
Por isso, brinquem, investiguem, riam, chorem…Mantenham-se em segurança. Em breve, estaremos de novo juntos na rua!
Por Francisco Lontro, psicomotricista e coordenador do “Brincar de Rua”, o programa de inovação social que está a criar oportunidades para que as crianças possam brincar de novo na rua, em segurança.
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