“Quem foi o espertalhão que inventou o trabalho remoto com filhos em casa?”

Nota prévia: Estou a escrever este texto no dia 19 de Março, 4º dia após o início da “quarentena” que trouxe todos os alunos portugueses para casa… altura em que a maior parte de nós já começou a pensar que aquelas graçolas que lemos no facebook, no sábado anterior, sobre “como vamos ficar loucos/as nas próximas semanas com os miúdos em casa”, deixaram de ser piadas… e, ou já são realidade, ou estão em vias de…A verdade é que não é a primeira vez que passo por isto (felizmente nas vezes anteriores os motivos foram bem melhores), o que me dá alguma margem de manobra para enfrentar os próximos tempos com maior ligeireza. E é basicamente por isso que decidi partilhar este texto.


Como em tudo na vida, trabalhar a partir de casa tem vantagens e desvantagens, mas para os iniciantes nestas lides, é fácil embarcar em romantismos (“ai que lindo, vou passar um tempo de qualidade com os meus filhos, finalmente arrumar a casa, por as leituras em dia, etc.”) e facilmente cair no pântano do “Ai Jesus que já é sexta feira, não trabalhei nada de jeito, nem estive com os miúdos como devia estar, nem fiz nada em casa…”.
Ficam aqui, portanto, algumas dicas que resultam da reflexão da minha viagem a esse pântano, ao mesmo tempo que venero (e contextualizo) a importância da rua e do Brincar para os miúdos (e para nós, que mais não seja para a nossa saúde mental).

1. Para trabalhar em casa é importante ser rigoroso e organizado

Certamente já leste isto 1000 vezes (eu já). Pois… eu estou nos antípodas dessa pessoa forte e estruturada, pelo que fazer um horário de trabalho é mesmo fundamental. Com os miúdos em casa é importante que eles tenham também o deles e que ambos sejam emparelhados, definidos em parceria, para que se encontrem tempos comuns. Para os miúdos, em especial, tudo isto exige uma reorganização que é tanto mais difícil quanto mais novos forem ou quanto mais próximos estiverem daquela idade maluca em que pensam que já sabem tudo sobre a vida.

Notas:

a) Faz um esforço para cumprir esse horário, para que os miúdos percebam esse bem-intencionado esforço de rigor; mesmo que falte só enviar aquele email, para! E mostra aos miúdos que o fizeste, especialmente se o tempo a seguir for um tempo em comum (isto, claro, se eles já não te estiverem a melgar à meia hora, a perguntar “ainda falta muito para irmos brincar papá/ mamã?”).
b) põe o tempo de brincar na tua lista de “tarefas”; nós adultos tendemos demasiadas vezes a considerar a brincadeira como tempo desperdiçado ou que, pelo menos podia estar a ser aplicado em coisas mais úteis (como aquele tal email que tinha mesmo que seguir hoje), mas a verdade é que para os miúdos, pelo menos até aos 10/ 12 anos de idade, não só brincar é uma atividade fundamental para o seu desenvolvimento como, sobretudo, é uma ferramenta fundamental de relação, ou seja, pedir para brincar contigo quer antes de mais dizer “Amo-te. Fazes-me falta. Quero partilhar coisas contigo”.
c) Mete na tua cabeça que vais ter que garantir um tempo  de estar/ brincar com os miúdos logo de manhã; lembra-te que os miúdos não estão habituados a estar em casa o dia todo, não estão habituados a que estejas em casa o dia todo e que tu és berço de felicidade, alegria, bem estar – é natural que te queiram celebrar quando o dia começa;
d) É duro para ti cumprir estes horários e adaptares-te a uma nova rotina? Imagina o que vai na cabeça dos miúdos (deixo apenas alguns exemplos: 1) “Esta história de não ir à escola até que é fixe, mas toda a gente à minha volta parece genuinamente preocupada com não sei bem o quê”; 2) “Estar em casa até que é bom, mas onde estão os meus amigos e tudo o que acontece na rotina chato/fantástica da escola?”; 3) “Isto de estar com os pais o dia todo é porreiro, mas porque é que não pode ser como aos fins de semana com mais diversão e menos tarefas para fazer?”).


2. A adaptação à nova rotina vai demorar

Lembras-te do Abrunhosa? “É preciso ter calma… Não dar o Corpo pela Alma”. Que sabedoria! A não ser que sejas a tal pessoa (ultra) rigorosa e organizada, vai levar tempo até te conseguires adaptar à nova rotina; vai levar tempo para os miúdos se adaptarem à nova rotina; e, mais relevante ainda, vai levar tempo a que todos se habituem a estar tanto tempo juntos, a conviver com as coisas fantásticas de cada um, mas também com todas as chatices que nos tornam, a todos, pessoas reais, imprevisíveis e os seres únicos que aprendemos a amar.

3. Define os “serviços mínimos”

Ou o mesmo é dizer que essa imagem linda de que vais ter mais tempo para ti, para os miúdos e que te vais conseguir organizar melhor para o trabalho é para esquecer, ou pelo menos vais ter que aprender a não viver obcecado(a) com isso. Sim, por vezes o trabalho vai fluir melhor, por vezes vais saborear melhor aquele momento em que conseguiste finalmente que os miúdos acalmassem e te pudeste aninhar no(a) parceiro(a) do lado ou ler mais um capítulo do livro do que é normal, e, por vezes, vai-te saber bem demais (a ponto de dizeres para ti próprio(a) “Era tão mais feliz se a vida fosse sempre assim!”) os momentos fantásticos que passas com os miúdos… Aprende a viver com esses momentos, a valorizá-los; para mim, para que isso aconteça tenho que sentir que consegui alcançar alguma meta que tinha definido, para sentir que as coisas estão minimamente equilibradas e que estou a responder a tudo o que é necessário – ou seja, é preciso dominar a arte da definição de metas e da gestão das expectativas (o que leva tempo!!!).

4. “Dá um desconto”… a ti próprio(a) e aos miúdos

Esclarecido o ponto anterior é fundamental que oleies a tua “válvula de escape”.  Nada na (minha) vida é linear, nada é exatamente como imaginámos que ia ser… É preciso dizer ao chefe ou aos colegas que não dá para cumprir o prazo a que nos tínhamos comprometido; é preciso por vezes deixar que os miúdos não comam tudo o que têm no prato ou simplesmente dizer com tom autêntico: “Não gostei do que fizeste, mas gosto muito de ti (sem ter que haver fuzuê com sermões e ralhetes à mistura)!

5. Foca-te no “agora”

Abstrai-te do email que devia ter sido enviado, porque vais ter tempo para o enviar depois da sessão de cozinha “faz de conta”, ou da cozinha a sério que leva à preparação das refeições do dia. Se está na hora de brincar com os miúdos, brinca focada(o) na brincadeira e não no que vais fazer a seguir; porque se estiveres nesse limbo mental, não vais saborear o momento, os miúdos vão pedir-te mais (porque eles, melhor que ninguém, têm um brincómetro de afinação ultra sensível que nunca se engana nas dosagens necessárias de brincadeira); tu vais sentir-te culpada(o), porque tens que ir “trabalhar” e não estiveste tempo “suficiente” com os miúdos; ou vais brincar “só mais um bocadinho” e vais sentir-te mal porque devias era já estar a trabalhar. Encara cada momento como a tarefa que tens que realizar agora, levada até ao fim, com os objetivos claramente atingidos.

6. Vão existir situações stressantes…

 É melhor contares com isso e eventualmente seres surpreendido(a) pela positiva… vão haver zangas do nada, pinturas indevidas no chão e/ ou nas paredes, água em sítios indevidos, uma ou outra coisa partida. Cai na real. Define regras essenciais e discute-as com a pequenada: “Para isto correr bem não pode haver bola na sala”, “experiências com água é na casa-de-banho e só na casa-de-banho”, “pinturas são na mesa X”; recorda as regras com regularidade… e quando houver “porcaria”, para, inspira, conta até 10 e antes de dizeres aos gritos “Eu não disse que vocês iam partir a jarra Ming onde estão as cinzas do meu gato Mimi se andassem a jogar à bola na sala de jantar!”, pensa que são miúdos, estão “presos” e que provavelmente a “porcaria” não foi mal intencionada (e que para além disso tu sabes que a jarra não era Ming e que podes comprar uma igual na loja da esquina por 10 euros – ou seja, talvez não seja assim tão importante). Parem, com calma, e falem sobre o que se passou; discutam eventuais consequências, mas sobretudo, o que têm que fazer diferente, todos, para que não volte a acontecer.

7. Cuidado com os acidentes

Muito tempo fechados em casa equivale a dizer que vamos ter Poirrot’s ou Inspetores Max em potência, a vasculhar tudo à procura da próxima aventura. Nunca é demais alertar para as brincadeiras nas varandas e com os produtos químicos diversos lá de casa – desde os de utilização diária no WC aos detergentes na cozinha. Brincar é o berço da ciência e da criatividade e é natural que os miúdos sintam que podem explorar tudo o que têm à sua volta, porque “se está em casa, se os pais deixaram aqui e nunca falaram sobre isto é porque de certeza não tenho que me preocupar com a segurança”. Mais uma vez falem sobre os limites e sobre os riscos (para evitar que se tornem em perigos).

8. Lembra-te que é preciso comer… bem

Para além do tempo extra que a família vai gastar a comprar os bens alimentares nesta época de restrições, o mais importante é que não descures que vais ter que perder tempo a preparar as refeições nutritivas e saborosas. Aqui em casa foi uma coisa que gerou muitas vezes tensão: “não estamos a dedicar-nos a fazer uma comida gostosa” > “não se tira prazer no momento de refeição” > “o miúdo não está a comer como deve ser”… [soam os alarmes da crise existencial] é mais uma “desculpa” para o resto correr mal. Sugiro portanto que planeies com o companheira(o), quem faz o quê e quando (em doses que eventualmente dêem para mais do que uma refeição) e, se, como cá em casa, não tiveres Bimbi (ou similar), aBimbalhes os miúdos, ou seja, que os envolvas na preparação das refeições com as coisas que sabes que não te vão stressar e que eles vão conseguir fazer bem e com algum prazer (esquece lá o “Oh Bernardo preparada aí o souflé para o pai”).


9. Faz uma lista de tarefas domésticas com os miúdos

Chama-os à responsabilidade de contribuir para que tudo esteja minimamente decente aí em casa. Nota: as coisas provavelmente vão estar abaixo dos níveis mínimos habituais de decência aí de casa (especialmente a partir da semana 2), por isso calma (recorda a dica 3) e lembra-te que: 1) há coisas mais importantes do que a limpeza do soalho; 2) se houver cotão a passear por aí já tens o cenário perfeito para uma brincadeira de comboys. A partir dos 3 anos uma criança já tem capacidade para entender a importância de arrumar as suas coisas e agir coerentemente com esse entendimento; com 4, os miúdos já conseguem ajudar o por a mesa e a colocar os pratos na mesa; e por aí adiante!

10. Arranja tempo para ti próprio (a)

(Entram os violinos) Faz um esforço – mas isto é mesmo sério – para teres um tempo para ti próprio(a), sem que o bem-estar desse momento dependa de terceiros. Põe isso no teu horário, nem que seja apenas e só ouvir o programa do dia d’“O homem que mordeu o cão!”, ou ler mais um capítulo do livro X. Obriga-te a isto. Vai saber bem. Acrescento também que é importante que, apesar de estarem em modo guerrilha, que os generais da casa se encontrem para… afinar estratégias para os capítulos seguintes…

11. Lembra-te da “saidinha higiénica”

 Os tempos são de “quarentena”, mas o nível de “ameaça” atual aponta “apenas” para a importância de manter o afastamento social e a partilha de objetos (de todas as espécies). Por isso, combina um horário com os vizinhos do prédio para que não se encontrem no pátio, usa o telescópio que está a ganhar pó no armário para espiares o jardim mais próximo (para ver quando está lá pouca ou nenhuma gente), mas tenta sair de casa todos os dias com os miúdos. Eles precisam de brincar “sem limites” de 4 + 2 paredes, sem o limite visuoespacial da sua “gruta”; precisam de ver o céu e acreditar que o podem tocar; precisam de ver e ouvir o vento e os pássaros (eu já tenho uma playlist de documentários de vida selvagem preparada para mostrar ao meu filho, mas não é a mesma coisa), de correr mais depressa, mais longe, mais alto. Pela vossa saúde, façam pelo menos esse esforço, cumprindo todos as regras de segurança. Prevejo que no final deste tempo de crise teremos aprendido todos (da maneira mais dura) a importância de vir brincar para a rua (mas falaremos disso certamente mais tarde).

E pronto, já vai longo o texto, mas quero terminar com a mensagem do momento:


“Vai ficar tudo bem”, é claro.  Se correr como cá em casa haverá momentos para tudo: para felicidade exuberante (daquela que parece que chegámos ao máximo do que é importante na vida) e alguns (poucos) momentos cinzentos de brigas, choros e desentendimentos.


Haja clarividência para saber tirar o melhor de todos os momentos; haja criatividade para encontrar atividades para os miúdos se entreterem e manterem o espírito curioso (talvez agora seja a boa altura para se pensar no papel da escola e do professor – façam o favor de manter os miúdos daí de casa curiosos – “o que é que queres investigar hoje?” é a pergunta de €1M); e haja paciência para aturar os Recursos Humanos da empresa a chatearem-nos com mais uma reunião de videoconferência, quando na verdade só o que apetecia era ficar o dia inteiro com aquela camisola manchada de leite dos cereais da manhã (ah… ficaram duas dicas por escrever:

12. Dorme em condições – quantidade e qualidade

Vais precisar de estar no teu melhor para enfrentar todas as tarefas do dia seguinte;

13. Veste-te como se fosses trabalhar para fora de casa

Vá, podes manter os chinelos dos pompons, para dar um toque mais exótico;


Se tiveres mais dicas vai à nossa página no facebook e no instagram, procura a publicação que se refere a este texto e partilha-as.Também nas redes sociais estamos a publicar todos os dias sugestões de brincadeiras e atividades para dar uma ajuda na inspiração. E ainda podes consultar uma lista de coisas fantásticas que estão a acontecer online (transmissões ao vivo de peças de teatro, sites de atividades, etc.) que a comunidade Brincar de Rua está a começar a compilar

Agora (mesmo) para terminar, não te esqueças também que o tédio é um excelente aliado da brincadeira (e do desenvolvimento dos miúdos), portanto, (Dica 14):

14. Esquece lá essa ideia de que tens que ter os miúdos “entretidos” o tempo todo:  uma das partes boas de se ser criança é aprender a descobrir formas de vencer esse tédio (se te faz sentir melhor, há quem diga que essa é a base da criatividade e do empreendedorismo – quando o(a) teu(ua) filho(a) te disser que está aborrecido(a) diz-lhe que vá “ser o Elon Musk/ Helena Braga para o quarto e deixa a mãe/ o pai trabalhar mais um bocadinho”).

 

Por Francisco Lontro, psicomotricista e coordenador do “Brincar de Rua”, o programa de inovação social que está a criar oportunidades para que as crianças possam brincar de novo na rua, em segurança.

 

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